Olha que lindo !
Após o vigésimo sexto
“olha que lindo“ comecei
a prestar atenção à
conversa dentro do veículo.
Pode ser que tenha sido a
trigésima vez que ouvi essa
exclamação naquele passeio
em minha terra natal.
Minha mulher Maria Alice e
eu estavamos em companhia
de minha mãe e de duas parentas
próximas. Professoras e amantes
de gatos.
O tempo era fantástico. Para um dia de primavera nos alpes austríacos até um pouco quente demais.
O céu estava sem nuvens, o tanque cheio e em meu estômago manifestou-se um apetite por um bom prato.
Não somente o meu linguajar montanhês ficou inalterado apesar de décadas de ausência de minha terra natal, a Áustria.
O mesmo acontecia com meu desejo de comer um assado de porco, um salsichão de sangue, linguiças e uma carne de fumeiro com veios acentuados de gordura, com chucrute e batatas.
Eu dava preferência a restaurantes, onde tudo isso chegava à mesa dentro de uma grande e fumegante terrina de louça.
Justamente naquele dia maravilhoso do mês de maio, o meu apetite estava prestes a desaparecer. Quanto mais eu tinha que escutar aquelas exclamações de júbilo “ó que lindo!”, maior era sombra que começava a deitar-se sobre o meu bom humor inicial.
Na verdade, eu gostaria de compartilhar a opinião dos outros com o mesmo fervor. Era impossível!
Eu também gostaria de saudar esse dia imaculado de primavera austríaca, como faziam as minhas queridas patrícias, pois era o espetáculo da natureza e o milagre de Deus, com os homens trabalhando em conjunto para tornar o meio-ambiente ainda mais convidativo.
Eu simplesmente não pude! Embora quisesse entoar no mesmo tom, por amor a minhas parentas austríacas, eu não consegui sair da pele de quem já vive há muitos anos no Brasil...
Tudo em nosso redor era lindo e maravilhoso e merecia ser elogiado: as flores do campo na relva, o zumbido alegre dos insetos, as matas em diversas nuances de verde...
Mesmo assim, o meu mal estar crescia com cada “ó que lindo!”
Enquanto a minha mãe falava do verde da paisagem que nosso caminho cortava, Steffi e Poldi se ocupavam de minha mulher Alice.
O banco de trás do carro alugado em Viena parecia um mirante. Mal avistavam algo interessante, gritavam em coro: “ó que lindo!” Olhe Alice, “ó que lindo!”
Ao passar por uma típica casa de fazenda dos alpes, com um balcão cheio de flores: “ó que lindo!” Avistavam na curva seguinte a torre de cebola da igreja e os telhados de uma pequena aldeia, emoldurada por uma viçosa vegetação como ovos de páscoa no jardim: “ó que lindo!”
Se o mundo é lindo parece depender não só de uma linda vista, como também do ponto de vista de quem o observa...
Quando Steffi e Poldi visitaram o Brasil com a minha mãe, não pareciam muito entusiasmadas com as nossas belezas naturais.
Embora Alice e eu nos esforçássemos em mostrar-lhes Salvador, - a minha terra por opção - dos ângulos mais favoráveis, não colhemos nenhum tipo de reconhecimento. Elas não se deixavam impressionar por nossas paisagens deslumbrantes, nem pelas atrações arquitetônicas. Quando finalmente mostravam interesse por alguma coisa, era sempre a construção errada, um altar coberto de ouro e outros objetos secundários, os narizes enfiados nas páginas do guia ilustrado trazido da Europa. Nenhum “ó que lindo!”.
Alice e eu insistimos em arrastar as queridas parentas austríacas para os pontos turísticos mais importantes da Cidade do São Salvador.
Aqui um forte numa praia de águas límpidas com bosques de coqueiros, lá o maior e mais importante conjunto de arquitetura colonial da América do Sul, 365 Igrejas católicas, mosteiros, museus, mais palmeiras, gigantescos arbustos de hibiscus floridos, avenidas, edifícios pósmodernos, shopping centers, mangueiras e beija-flores...
Tudo isso no clima mais agradável que o planeta pode oferecer e embaixo de um céu de brigadeiro...Os esforços foram em vão! Embora nossos olhos fitassem cada lugar interessante e bonito como se fossem ventosas de um polvo apaixonado, acreditando que Steffi e Poldi também grudassem nas mesmas belezas, nós não conseguíamos impressioná-las... Nem diante do por do sol à beira mar com água de côco geladinha elas sairam de sua postura impassível. Pareciam vacinadas contra as belezas naturais e os monumentos brasileiros.
Que a minha mãe nunca tivesse morrido de amores pelo Brasil era compreensível. Toda mãe deve odiar o país, que lhe roubou o filho. Por que as outras duas não sucumbiram diante de toda magia da Boa Terra era um mistério para nós. Será que Steffi e Poldi queriam ser solidárias com a minha mãe, que roncava até durante o auge de um show folclórico? Certamente que não! Devia haver outra explicação pela falta de entusiasmo por nossa cidade.
Conversando com Alice, cheguei à seguinte conclusão: Steffi e Poldi são professoras.
Por experiência própria sabia quanta importância pedagogas austríacas davam à “forma externa dos trabalhos”. Caligrafia torta e mal legível era consequentemente desaprovada. Mesmo se o texto contivesse observações interessantes. Escrita bonita, embora medíocre, era desejada e elogiada...
Em termos de “forma externa”, a Cidade do Salvador realmente não merecia nota melhor que um dois, ou no máximo um três. Em alguns pontos da cidade até um zero.Era isso! Os defeitos de nossa cidade tão exótica se imiscuiam sem o mínimo pudor em todos os retratos tirados, eram presentes em todo lugar.
A pobreza gritante, os inúmeros exemplos da urbanização precária, o lixo nas ruas, as paredes de tijolo sem reboco, bem como a multidão de crianças seminuas nas sinaleiras, estendendo as suas mãozinhas escuras por uns trocados... Que adianta a água do mar cristalina com um tapete de areia fina acariciando as nossas solas dos pés, se temos de partilhar a praia com meninos de rua, que nem roupa de banho decente têm para vestir... que rolam aos gritos na areia perto da gente, parecendo larvas empanadas... Salvador, Bahia, Brasil, segundo tais padrões é exótico demais para cabeças de visitantes da Europa Central. Eles não enxergam a vida através de tanta gente nas ruas e praças...
A desordem da sociedade baiana não combina com o mundinho saudável e certinho dos austríacos. O turista vira a cara aflito, dedicando-se a pontos turísticos notáveis, quer dizer, a coisas que ele conhece de vídeos de propaganda do turismo receptivo. Objetos como os altares dourados da igreja de São Francisco, sobre os quais ele pode ler no seu guia ilustrado, que sempre carrega consigo...
Eu queria mostrar para as queridas viajantes uma árvore que crescia no telhado de um prédio, quando fomos acossados novamente por um grupo de crianças. Imediatamente evaporou o interesse naquele planta curiosa, exemplo de força vital tão típico e simbólico para o Brasil... Ficou apenas o aborrecimento causado pelos meninos pelados, que nos importunavam, observando-nos famintos, com olhos de cachoro pidão.
Nós os afugentamos, virando-lhes as costas. Um ar de nojo em nosso rosto reforçava nossa postura de rejeição explícita...
De repente Steffi avistou na sombra de uma ruína barroca um gatinho.“Olha o gatinho!”, exclamou satisfeita, demonstrando intensa alegria.“Olha o coitadinho do gatinho cuticuti! Meu Deus, ele não é encantador?“
Se nós, Alice e eu, durante todos aqueles passeios turísticos pela Cidade do Salvador não fomos capazes de arrancar de nossas parentas austríacas um único “olha que lindo! sequer“, colhemos pelo menos um “olha o gatinho!“. Que Deus presenteie aquele felino com uma ratazana bem gorda!
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