domingo, 3 de abril de 2011


Queria compartilhar este texto que escrevi sobre o carnaval:

Esses dias ouvi um comentário sobre o arrastão que acontece na quarta-feira de cinzas puxado por Carlinhos Brown.


Alguém disse: "é tranquilo o arrastão porque o povo respeita Carlinhos."

Pensei justamento o contrário:

"é tranquilo porque Carlinhos respeita o povo, porque não há cordas.

Não há um "nós" e os "outros"."

Não sou fã de carnaval, nunca fui. Talvez porque só tenha conhecido em minha infância e toda adolescência o carnaval de trio, de blocos e de sempre violência, confusão, aperto. Nunca achei graça nisso.


Um dia conheci o carnaval de Recife e Olinda e entendi o que era "brincar" o carnaval.

Gente fantasiada (de todas as idades), pistolinhas d'água, o espírito brincalhão de fazer rir quem está por perto, pregar sustos e logo depois sorrisos.

Confete e serpentina!

Foi muito bacana fazer parte daquela festa.

Volto a Salvador. Os trios elétricos mudaram a história do carnaval daqui.

Entendo que é legal ir atrás do trio, mas é inegável que os grandes caminhões sonoros têm um efeito deletério sobre todas as outras possíveis atrações animadas apenas pela força do sopro e do bater de tambores.

O trio arrasta a multidão e empurra pra fora do circuito as fanfarras, os bloquinhos, os caretas, os confetes...

Não há espaço sonoro, ninguém se ouve (não precisa falar é só agarrar e beijar).


O antropólogo Roberto da Matta escreveu que a essência do carnaval é a possibilidade de inversão de papéis: o pobre que se fantasia de rei, o rico que se fantasia de mendigo, extra-terrestre...

É a possibilidade de nos dias regidos por Momo desconstruirmos a lógica social estabelecida.

Então o que vemos em Salvador é justamento o contrário disso.

É e mesma elite-soteropolitana-que-se-acha-rica ocupando os mesmos lugares de destaque e privilégio (camarotes, blocos protegidos do povo-perigoso-sujo) e, claro, o que vai se reproduzir numa festa como essa é a mesma violência produzida pela desigualdade do nosso cotidiano.

Nosso cotidiano é igualzinho ao carnaval: a elite-soteropolitana-que-se-acha-rica pendurada em seus edifícios, circulando de carros com películas, indo a shopping centers e exigindo mais ruas e viadutos.

A vida encapsulada buscando segurança.

Andar na rua só quando se vai para o exterior.

Bairro nobre é sinônimo de ruas limpas, silenciosas e vazias.

Ninguém sai a pé porque é perigoso, mas é nobre (!). E com isso o coletivo da nossa cidade se esvai pelos bueiros.

As pessoas não querem uma cidade melhor (só um trânsito melhor), querem apenas o seu paraíso particular nos condomínios clubes, cheio de gente de "bem".

A vida só entre iguais gera um medo absurdo do que seja diferente e perde-se completamente os parâmetros do que é realmente perigoso ou não.E o centro da cidade, um lugar cheio de história e cultura, fica completamente abandonado, decadente.

A rua é do povo, do pobre; transporte de massa é para pobre que, desconhecendo seus direitos, não consegue se organizar para exigir melhorias.

Salvador é uma cidade dividida e vazia.

Classe-média-que-acha-que-é-rica não quer direitos iguais, quer privilégios.

E o carnaval soteropolitano é um reflexo dessa compreensão distorcida do que seja a vida coletiva na cidade.

Sim, claro, não é só aqui. Mas falo do lugar de ondo moro, onde vejo, todos os dias, a decadência progressiva de sorriso banguela. É um problema de todos nós. Para não dizer que não falei de flores (ou confetes), fui ao carnaval do Pelourinho.

E lá avistei o Recife.

Ótima programação, fantasias, fanfarras, diversidade, crianças, velhinho, alegria, pistolinha d'água!

Todos tratados com respeito, todos se respeitando e nem precisa ser o Carlinhos Brown!

Giovana

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