Queria compartilhar este texto que escrevi sobre o carnaval:
Esses dias ouvi um comentário sobre o arrastão que acontece na quarta-feira de cinzas puxado por Carlinhos Brown.
Alguém disse: "é tranquilo o arrastão porque o povo respeita Carlinhos."
Pensei justamento o contrário:
"é tranquilo porque Carlinhos respeita o povo, porque não há cordas.
Não há um "nós" e os "outros"."
Não sou fã de carnaval, nunca fui. Talvez porque só tenha conhecido em minha infância e toda adolescência o carnaval de trio, de blocos e de sempre violência, confusão, aperto. Nunca achei graça nisso.
Um dia conheci o carnaval de Recife e Olinda e entendi o que era "brincar" o carnaval.
Gente fantasiada (de todas as idades), pistolinhas d'água, o espírito brincalhão de fazer rir quem está por perto, pregar sustos e logo depois sorrisos.
Confete e serpentina!
Foi muito bacana fazer parte daquela festa.
Volto a Salvador. Os trios elétricos mudaram a história do carnaval daqui.
Entendo que é legal ir atrás do trio, mas é inegável que os grandes caminhões sonoros têm um efeito deletério sobre todas as outras possíveis atrações animadas apenas pela força do sopro e do bater de tambores.
O trio arrasta a multidão e empurra pra fora do circuito as fanfarras, os bloquinhos, os caretas, os confetes...
Não há espaço sonoro, ninguém se ouve (não precisa falar é só agarrar e beijar).
O antropólogo Roberto da Matta escreveu que a essência do carnaval é a possibilidade de inversão de papéis: o pobre que se fantasia de rei, o rico que se fantasia de mendigo, extra-terrestre...
É a possibilidade de nos dias regidos por Momo desconstruirmos a lógica social estabelecida.
Então o que vemos em Salvador é justamento o contrário disso.
É e mesma elite-soteropolitana-que-se-acha-rica ocupando os mesmos lugares de destaque e privilégio (camarotes, blocos protegidos do povo-perigoso-sujo) e, claro, o que vai se reproduzir numa festa como essa é a mesma violência produzida pela desigualdade do nosso cotidiano.
Nosso cotidiano é igualzinho ao carnaval: a elite-soteropolitana-que-se-acha-rica pendurada em seus edifícios, circulando de carros com películas, indo a shopping centers e exigindo mais ruas e viadutos.
A vida encapsulada buscando segurança.
Andar na rua só quando se vai para o exterior.
Bairro nobre é sinônimo de ruas limpas, silenciosas e vazias.
Ninguém sai a pé porque é perigoso, mas é nobre (!). E com isso o coletivo da nossa cidade se esvai pelos bueiros.
As pessoas não querem uma cidade melhor (só um trânsito melhor), querem apenas o seu paraíso particular nos condomínios clubes, cheio de gente de "bem".
A vida só entre iguais gera um medo absurdo do que seja diferente e perde-se completamente os parâmetros do que é realmente perigoso ou não.E o centro da cidade, um lugar cheio de história e cultura, fica completamente abandonado, decadente.
A rua é do povo, do pobre; transporte de massa é para pobre que, desconhecendo seus direitos, não consegue se organizar para exigir melhorias.
Salvador é uma cidade dividida e vazia.
Classe-média-que-acha-que-é-rica não quer direitos iguais, quer privilégios.
E o carnaval soteropolitano é um reflexo dessa compreensão distorcida do que seja a vida coletiva na cidade.
Sim, claro, não é só aqui. Mas falo do lugar de ondo moro, onde vejo, todos os dias, a decadência progressiva de sorriso banguela. É um problema de todos nós. Para não dizer que não falei de flores (ou confetes), fui ao carnaval do Pelourinho.
E lá avistei o Recife.
Ótima programação, fantasias, fanfarras, diversidade, crianças, velhinho, alegria, pistolinha d'água!
Todos tratados com respeito, todos se respeitando e nem precisa ser o Carlinhos Brown!
Giovana
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