Até a idade média era fácil entender a sociedade. Havia certa quantidade de pessoas protegidas por muralhas, outras, em número bem maior, do lado de fora, à merce de intempéries, bandos de ladrões e incursões de inimigos.
Entre um burgo fortificado, com respectiva nobreza, corte e demais burgueses e outro, havia matas, pântanos e cordilheiras infestadas por perigosos salteadores, bruxas, anões, gigantes, unicórnios e dragões.
A viagem entre um burgo, entre um castelo, entre uma cidade e outra, era uma aventura e tanto, comparável à odisseia de alguém capaz de produzir um texto razoavelmente exigente e um leitor que entenda a missiva.
A vida no burgo era previsível. O soberano cuidava da corte, protegia os burgueses. A plebe ignara do lado de fora das muralhas comia e aproveitava as sobras.
Com os levantes dos camponeses e o confronto entre ancinhos e foices contra floretes, a paz dos nobres e respectivos protegidos acabou.
Há quem responsabilize viajantes e forasteiros pelos questionamentos subversivos a envenenar o coração do povo. Um bobo da corte visionário chegou a comparar os burgos com equipamentos futuristas, falando em centros comerciais e condomínios fechados cercados por muralhas idênticas às que estavam sendo derrubadas aos poucos.
Em algum momento ouvia-se palavras como liberdade, igualdade, fraternidade. Outros falavam em solidariedade.
Alguns poucos entendiam o que estava acontecendo, observando os sinais indeléveis dessa solidariedade por parte de governos, preocupados em cuidar não só de um pequeno grupo de puxa-sacos e sim de todos os habitantes.
Com o tempo havia estradas lisas e bem feitas tanto para carrões de luxo, quanto para calhambeques; escolas públicas de boa qualidade para todas as crianças; sanitários públicos para todas as bexigas e todos os intestinos, saúde pública, esporte, lazer e moradias para todos.
Enquanto a sociedade composta por uns poucos burgueses era homogênea era fácil de entender e administrar, governar um povo heterogêneo passou a ser um Deus nos acuda, com os governantes tropeçando de uma situação caótica em outra dificuldade nova e sem precedentes.
A bem da verdade, ao longo dos séculos surgiram sociedades em que era possível ver a cada passo os tais sinais de solidariedade do governo para com o povo. Asfalto liso, passeios e demais espaços públicos limpos e bem cuidados, com áreas verdes convidativas... e servidores públicos em toda parte mantendo a ordem. Transportes de massa sobre trilhos com horários, visando as necessidades dos passageiros. Festas populares visando a alegria do folião.
O cidadão cercado de tantos mimos, logo percebeu essa solidariedade, tornando-a recíproca.
Só em obras de ficção como "Admirável Mundo Novo" ainda havia a nítida separação de classes e castas e respectivos espaços para viver, ou seja, locais desenvolvidos e habitáveis como os burgos medievais e regiões não desenvolvíveis, como as florestas e os pântanos cheios de figuras lendárias das histórias de cavaleiros andantes.
Um ou outro encrenqueiro maluco fala de situações medievais com transportes de massa, usando ônibus, com roteiros tipo "caça-níquel" visando o bolso dos proprietários do transporte urbano; festas populares, visando a conta bancária dos donos dos blocos e trios e respectivos sócios; espaços públicos destruídos e inutilizados, visando a frequência dos shopping centers.
A viagem de ônibus entre um centro comercial climatizado e outro é uma aventura e tanto, comparável à odisseia de alguém capaz de produzir um texto vagabundo como esse e um leitor culto e obstinado, procurando entender essa missiva mambembe.
Falando sério... eu gostaria que a nossa garotada, viajando como nunca ao exterior, tentasse enxergar e entender esses sinais indeléveis de solidariedade recíproca que há lá fora, para na volta começar a questionar o "salve-se-quem-poder medieval" e bronca generalizada que há em Salvador!
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