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De repente, alí na fila do supermercado, um fiapo de conversa despertou a minha atenção.
Pensei que o assunto das cotas para negros tivesse morrido.
Pensei que já tivessemos conseguido avançar no pensamento em torno de ações afirmativas.
Mas não!
O que captei do relato da senhora bem vestida em minha frente: ... a filha havia oferecido uma carona para uma colega de curso de mestrado e ficou chocada com a forma ríspida com que o oferecimento foi rejeitado.
- Sou cotista, vou pegar o meu buzú -!
Motivo suficiente para que a filha da moça ficasse perplexa, ofendida e triste.
Mais uma razão para que as duas senhoras ratificassem sua opinião contrária à adoção das tais cotas. Ironia da vida ou não, ambas eram negras!
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Até onde a maldição da Casa Grande ainda vai nos perseguir?
Com inteligência limitada seguro no binômio Casa Grande e Senzala como um corrimão, temendo não saber concluir o pensamento.
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Depois daquele 13 de maio de 1888 havia um ambiente úncio para todos os brasileiros... não importando se nasceram na Casa Grande ou na Senzala.
Havia esse ambiente. Parece que até agora, até hoje, ainda não sabemos direito que cara esse ambiente deve ter.
Vejo um enorme cabo de guerra entre a Casa Grande e a Senzala.
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Durante séculos o Mico Preto estava permanentemente nas mãos dos negros, nas mãos dos ocupantes da Senzala... desdenhados e desmerecidos pela "elite branca" da Casa Grande. Durante séculos convivemos com um conflito permanente que uns tentavam varrer por debaixo do tapete, esperando que o tempo e as novas gerações resolvessem o problema e arrumassem a bagunça gerada com a escravidão.
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Muitos outros, cansados de esperar, chutaram o pau da barraca, abandonaram o papel de vítima, assumindo as regras de jogo da Casa Grande, se tornando doutoras e doutores.
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Por mais que alguém tente ignorar e negar os efeitos do preconceito racial enraigado na nossa sociedade, eles se manifestam a cada instante, em cada gesto, como no caso da carona rejeitada pela colega do mestrado.
Outro exemplo emblemático está na suposta lentidão do Baiano. Será que não se trata de uma forma velada de desobediência cilvil e reação à postura dos que ainda se julgam "sinhozinhos" da Casa Grande? Penso que toda e qualquer segregação atinge os limites da idiotice humana.
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Penso que o conflito criado com a escravidão do povo negro e com o extermínio dos indígenas não pode ser ignorado enquanto a gente ouve piadinhas e sente vontade de generalizar...
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E por falar em generalizar... penso que não há uma só ação afirmativa que não possa ser alvo de críticas. Será que ações afirmativas como os sistemas de cotas são injustas só para mostrar quão injustos têm sido as regras de jogo impostos pela Casa Grande.
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Ouvi as duas senhoras pronunciarem palavras como "cizânia", "trauma" e "violência", resultados inevitáveis em cada sistema de cotas.
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Durante séculos o ônus desse conflito racial, cultural e econômico estava apenas de um lado.
Era natural empurrar o Mico Preto para os Afrodesendentes, para os índios.
Durante séculos vivemos num conflito social velado, que eu acho muito pior do que um confronto declarado.
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Vejo as ações afirmativas como uma forma de dividir o ônus da bagunça social ainda existente no Brasil.
Como menino fiz várias amizades que duram até hoje, que começaram com uma briga de socos e a cara enfiada num monte de neve...
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Se o assunto das cotas e demais ações afirmativas ainda está vivo, em uma década ou duas, com certeza, estará morto e enterrado. Daqui a uns 10 ou 20 anos, ninguém mais falará em cotas.
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Não importa que maluquices que o respectivo ministério ainda irá inventar.
Tenho certeza de que a Casa Grande vai ganhar um puxadinho joinha!
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Por favor me desculpe se chutei a bola muito longe por cima do travessão, mas diante daquele papo na fila do supermercado não pude me calar e mesmo correndo o perigo de ser mal interpretado e pagar um enorme mico, me senti na obrigação de dar a minha opinião.
Salvador 10 de janeiro de 2011
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Reinhard Lackinger
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p.s. Jogávamos Mico Preto em longas noites de inverno austríaco... Lá pelos anos 1950. Ainda não havia televisão e o rádio só era ligado quando havia algum programa que a gente queria ouvir. Era época do pós guerra e hora de economizar em tudo. Havia um baralho com um número impar de cartas. Pares de cartas podiam ser baixadas na mesa. Quem ficasse no fim com a carta solitária, com o "Mico Preto", perdeu o jogo.
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